Qual o papel de uma arquitetura periférica?
10, dezembro, 2019.
No decorrer daquilo que podemos chamar de debate teórico-filosófico arquitetônico, ou de um desenvolvimento crítico de temas tangíveis à disciplina e seus campos expandidos, acompanhamos uma preocupação crescente acerca às relações objeto/sujeito e seus processos de deslocamento — principalmente aqueles relativos à estética e ao lugar. A tabula rasa moderna; os ideais e utopias de homens resolutos, cartesianos, vestidos em seus ternos brancos vislumbrando seus grandes campos gramados marcados apenas por duras sombras de seus fálicos e “megazórdicos” edifícios, desenhando prisões sob o solo, estimularam, estigmatizaram o sujeito à epitome de um humanismo tardio, centro de mundos em um mundo sem centro.
Ville Raudiese, Le Corbusier (1922)
Fotografia Rotterdam (1944)
Em um mundo pós-guerras tais homens em suas vestimentas límpidas e reluzentes não viam mais que terrenos a serem desbravados, organizados, simplificados. Não tinham a capacidade de enxergar para além de seus bolsos, de seus egos, em seus altos arranha-céus aos coitados cinzentos, sujos e maltrapilhos, sem Deus, sem casa, sem território, sem si mesmos que restaram ao chão.
Um pensamento colonizador em essência, domesticador. Domesticam-se corpos, ideias, lugares. O outro toma forma apenas como ser passivo, a ser coordenado, condicionado. O projeto moderno em sua internacionalização não passa apenas de caravanas transvestidas de um novo tempo, continuam-se trocando espelhos por ouro, senão o que resta é o ostracismo, desconsideração, apagamento histórico.
Esse contexto faz com que nós, aqueles mesmos maltrapilhos, em nossas vestimentas sujas, rotas e cinzentas aceitemos didáticas, teorias e práticas que não passam de traduções mal formuladas, que aceitemos textos e contextos que não nos pertencem sob a égide de pertencer, pertencer aos brancos. Brasília, concreto, aço e carros, vias largas, arranha-céus de perder a vista, fragmentação, divisão. Todo um projeto que em essência não nos pertencem. No mínimo deveriam ser postos em panorama, discutidos. De que adianta uma nova capital em um país onde milhões não possuem um teto sob a cabeça e um prato sob as mãos?! Quais são as urgências de uma disciplina tão necessária ao cotidiano? Quais imagens precisam ser construídas em nosso dia-a-dia? Qual é o papel de uma arquitetura periférica? Qual o papel de um arquiteto, de uma arquiteta periféricos?
Essas questões vão além de uma discussão estritamente disciplinar. Elas passam antes pela própria noção de um sujeito deslocado do centro, ou dos centros, do mundo. Integrante de paisagens estritamente colonizadas, sujeitos que não olharam para o solo a ser desbravado, sujeitos que são frutos de estupros, de si mesmos, de suas terras, de sua história. Que lutam por sua identidade, seja criando-a ou regatando-a. Passam por entender programaticamente os problemas do Eu para então compreender o nós e todas as urgências urbanas de um lugar tão peculiar. Um retorno a si para então retornar ao seu lugar. Ver por entre as dobras da alma e as redobras da cidade.
Desta forma, o problema reside não no fim da escala de causas e efeitos que seria a forma da cidade, sua imagem concreta mas no polo oposto, a arquitetura periférica precisa questionar-se epistemologicamente e ontologicamente para conseguir deslocar-se à uma campo de emancipação, o qual não será moderno nem sequer pós-moderno, será outro, um Eu próprio, descolonizado, democrático e preocupado, com seu nome, sua situação, sua imagem. Qual seria essa imagem?! Apenas após iniciar-se um olhar crítico sobre si que poderemos descobrir, até lá, continuemos colonos, perpetuando didaticamente, teoricamente e na prática trejeitos que nunca foram nossos. Sejamos modernos, continuemos a vestir ternos brancos arranjados em brechós até que a luz encontre nossos olhos.